Seria bom reflectirmos sobre os'sinais' a que o texto dá tanto relevo e aqueles que para nós são importantes. Como se reconhecem os 'sinais' de um tempo em transformação? Quais os 'sinais' que para nós anunicam mudanças?
Lídia Jorge O Dia dos Prodígios Publicações Europa-América Lisboa, 1980
"Unanimismo aplicado a uma aldeia algarvia, como se esta fosse a Paris de Jules Romains. Unidade de lugar e de tempo, segundo as leis da narrativa fechada e clássica. Contudo, esse «breve tempo de uma demonstração» é uma viagem excepcional quanto e intensidade, dentro do microcosmo da realidade física, psíquica, social. A escrita da autora deste primeiro livro (já apareceu outro em 82) obedece a uma linha conceptual, lógico-estilística, que encerra uma obra romanesca sem intriga sem intriga onde apenas há puras realidades, e que por sua vez reproduz um objecto ideológico, utópico e lírico; o modo lírico é sui generis e estranhamente reconhece-se mais nas artes pláticas, na ingenuidade de Rosa Ramalho, no naïf-raffiné de Chagal, por exemplo. Dissemos microcosmo de uma aldeia algarvia desconhecida do fluxo artístico. A sua forte, credível e sempre transcendente literalidade tem apoio em dois vectores: o primeiro, uma íntima experiência da factologia, do infra-real ao sobre-real. Cada palavra encobre uma vivência memorável e imemorial, diria, cada palavra contém a própria história. Com a palavra, o gesto, isto é, outra palavra. Este prodígio do conhecimento quase autista do gesto humano, pré-científico, protográfico, oferece, mediante essa plural matéria-prima, o material. Caso singular, Lídia Jorge opera dentro de uma literatura que não cultiva sistematicamente nem as experiências do concreto nem o conhecimento material da realidade; pelo contrário, a literatura é considerada entre nós ou um ornamento ou cosa mental, abstracta. Aqui reside a linha de força original deste primeiro romance-surpresa de Lídia Jorge. O segundo vector-factor consiste na introdução do lúdico dentro dessa sondagem literária. Ao leitor, de Segunda, ou terceira leitura, ocorre que a A., com a matéria aqui caracterizada, opera depois através do jogo, do cálculo de probabilidades pessoal: como se as propostas e as apostas da verdade criassem uma ténue sucessão de episódios figurativos, uma vibração «Lust zum fabulieren», de élan épico; uma imaginação das probabilidades em marcha que se organiza organizando. Não será por acaso que a serpente, condenada pela ciência da natureza a arrastar-se horizontalmente, em O Dia dos Prodígios voa em todas as direcções. Este acidente do natural não se assemelha à serpente voadora de Jorge Luís Borges, curiosidade do insólito e do fantástico. O acidente do natural de Lídia Jorge é apenas um outro natural, em prisma imaginário, como qualquer outra visão do mundo. Extremamente vivo, o livro, articulando corpo real e imaginário, representativo da senso-motricidade verbal, individualizado e subjectivo, identifica-nos ao longo das páginas, faz-nos naturalizar, identificar com o objecto – subjectiva e objectivamente. Não proponho que se leia este livro de Lídia Jorge como um simples exemplo da arte de escrever, mas que se releia e decifre uma das mais ricas partituras da literatura portuguesa contemporânea, em que a ilusão da totalidade do microcosmo se conjuga com a ilusão do imediato quase cinematográfica (livro praticamente escrito no presente do indicativo; quantas frases curtas, constatativas, sem verbo, lembrando planos cinematográficos!), tudo convergindo em ilusão simbólica, esta já macrocósmica. Ou como da aldeia da serra algarvia chegamos ao theatrum mundi. “
Jorge Listopad, in Colóquio Letras, nº 67, de Maio de 1982
“O Dia dos Prodígios” conta a vivência das gentes duma localidade de Portugal, da região algarvia, no antes e pós 25 de Abril. É um meio rural e o que mais caracteriza as personagens é a sua maneira de falar e o modo de viver; há bastantes idosos, quase todos analfabetos, rudes e um deles muito violento; a grande falta de meios para receberem notícias provoca o seu isolamento e abandono; na falta de afazeres, passam o tempo comentando a vida uns dos outros, ora com verdades, ora com invenções, o que causa algum desentendimento entre eles. Os episódios em torno da cobra, o riso e a fuga da “mula menina” eram interpretados como sendo sinais que anunciavam mudanças. A existência de madrinhas de guerra, a morte do soldado e o facto de não se verem soldados naquele povoado, desde há muito tempo, dado os rapazes terem fugido todos aos 15 anos com medo da guerra, indicam-nos, no meu entender, que estamos no antes 25 de Abril. O acontecimento elucidativo da mudança é-nos transmitido quando os habitantes têm conhecimento da “Revolução em Lisboa” e pelo aparecimento de soldados garbosos e engalanados montados num carro de combate, anunciando liberdade e justiça. (Já é fora de tempo, mas só agora tive oportunidade de ler e comentar ).
Lídia Jorge
ResponderEliminarO Dia dos Prodígios
Publicações Europa-América
Lisboa, 1980
"Unanimismo aplicado a uma aldeia algarvia, como se esta fosse a Paris de Jules Romains. Unidade de lugar e de tempo, segundo as leis da narrativa fechada e clássica. Contudo, esse «breve tempo de uma demonstração» é uma viagem excepcional quanto e intensidade, dentro do microcosmo da realidade física, psíquica, social. A escrita da autora deste primeiro livro (já apareceu outro em 82) obedece a uma linha conceptual, lógico-estilística, que encerra uma obra romanesca sem intriga sem intriga onde apenas há puras realidades, e que por sua vez reproduz um objecto ideológico, utópico e lírico; o modo lírico é sui generis e estranhamente reconhece-se mais nas artes pláticas, na ingenuidade de Rosa Ramalho, no naïf-raffiné de Chagal, por exemplo.
Dissemos microcosmo de uma aldeia algarvia desconhecida do fluxo artístico. A sua forte, credível e sempre transcendente literalidade tem apoio em dois vectores: o primeiro, uma íntima experiência da factologia, do infra-real ao sobre-real. Cada palavra encobre uma vivência memorável e imemorial, diria, cada palavra contém a própria história. Com a palavra, o gesto, isto é, outra palavra. Este prodígio do conhecimento quase autista do gesto humano, pré-científico, protográfico, oferece, mediante essa plural matéria-prima, o material. Caso singular, Lídia Jorge opera dentro de uma literatura que não cultiva sistematicamente nem as experiências do concreto nem o conhecimento material da realidade; pelo contrário, a literatura é considerada entre nós ou um ornamento ou cosa mental, abstracta. Aqui reside a linha de força original deste primeiro romance-surpresa de Lídia Jorge.
O segundo vector-factor consiste na introdução do lúdico dentro dessa sondagem literária. Ao leitor, de Segunda, ou terceira leitura, ocorre que a A., com a matéria aqui caracterizada, opera depois através do jogo, do cálculo de probabilidades pessoal: como se as propostas e as apostas da verdade criassem uma ténue sucessão de episódios figurativos, uma vibração «Lust zum fabulieren», de élan épico; uma imaginação das probabilidades em marcha que se organiza organizando. Não será por acaso que a serpente, condenada pela ciência da natureza a arrastar-se horizontalmente, em O Dia dos Prodígios voa em todas as direcções. Este acidente do natural não se assemelha à serpente voadora de Jorge Luís Borges, curiosidade do insólito e do fantástico. O acidente do natural de Lídia Jorge é apenas um outro natural, em prisma imaginário, como qualquer outra visão do mundo.
Extremamente vivo, o livro, articulando corpo real e imaginário, representativo da senso-motricidade verbal, individualizado e subjectivo, identifica-nos ao longo das páginas, faz-nos naturalizar, identificar com o objecto – subjectiva e objectivamente.
Não proponho que se leia este livro de Lídia Jorge como um simples exemplo da arte de escrever, mas que se releia e decifre uma das mais ricas partituras da literatura portuguesa contemporânea, em que a ilusão da totalidade do microcosmo se conjuga com a ilusão do imediato quase cinematográfica (livro praticamente escrito no presente do indicativo; quantas frases curtas, constatativas, sem verbo, lembrando planos cinematográficos!), tudo convergindo em ilusão simbólica, esta já macrocósmica.
Ou como da aldeia da serra algarvia chegamos ao theatrum mundi. “
Jorge Listopad, in Colóquio Letras, nº 67, de Maio de 1982
“O Dia dos Prodígios” conta a vivência das gentes duma localidade de Portugal, da região algarvia, no antes e pós 25 de Abril. É um meio rural e o que mais caracteriza as personagens é a sua maneira de falar e o modo de viver; há bastantes idosos, quase todos analfabetos, rudes e um deles muito violento; a grande falta de meios para receberem notícias provoca o seu isolamento e abandono; na falta de afazeres, passam o tempo comentando a vida uns dos outros, ora com verdades, ora com invenções, o que causa algum desentendimento entre eles. Os episódios em torno da cobra, o riso e a fuga da “mula menina” eram interpretados como sendo sinais que anunciavam mudanças. A existência de madrinhas de guerra, a morte do soldado e o facto de não se verem soldados naquele povoado, desde há muito tempo, dado os rapazes terem fugido todos aos 15 anos com medo da guerra, indicam-nos, no meu entender, que estamos no antes 25 de Abril. O acontecimento elucidativo da mudança é-nos transmitido quando os habitantes têm conhecimento da “Revolução em Lisboa” e pelo aparecimento de soldados garbosos e engalanados montados num carro de combate, anunciando liberdade e justiça. (Já é fora de tempo, mas só agora tive oportunidade de ler e comentar ).
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